quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Back to war


A casa aqui do Quase anda vazia e triste, há muito sem espanar e varrer. É que tenho andado igualmente vazia. Não há melhor definição: vazia. Sabe os dias em que você amanhece com vontade de noite? Um sono que nunca é suficientemente dormido, mesmo que em 8, 10, 12 horas? Uma incapacidade momentânea de se dizer feliz com alguma coisa, mesmo que racionalmente se transborde de gratidão? Uma total desvontade de manifestar afeto aos próximos, mesmo que ele exista oceanicamente? Um desânimo absoluto de fazer inclusive as coisas queridas, como digitações criativas? Pois é: vazia.

Juro que não sei se é o município que destrói minha serotonina ou se meu corpo anda numa tal miséria de serotonina que fica quase insuportável arrastar o município (minha única cruz de madeira maciça). Vou empurrando o troço com humor bastante acinzentado, embora fino. Estou nublada há vários dias – sem, por enquanto, previsão de solzinho. Achei que não deveria vir ao blog criar assuntos tralalá e mentir generosamente. Não basta mentir generosamente no minuto a minuto do mundo táctil? Mais do que isso, entope as artérias.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

No subject


Não, a última semana não foi de tantas papelices como a anterior. Eu simplesmente estava vazia para escrever. O sentimento que devem ter os troncos ocos, um Kinder Ovo sem surpresa. Trabalhar no que trabalho me deixa tão triste, tão triste, tão irritada, tão desesperançada, tão desrespeitada, tão vilipendiada (olha o mofo!), que vez por outra chupa até minha grande alegria de digitar. Arrasto-me para cá de volta, obrigatoriamente, com o coração ainda de pijamas. Protesto, faço luto, mas volto.

É óbvio que o leitor pensou coisas óbvias. Que eu mude de emprego, que eu largue essa vida mal-amada de professora do município. É óbvio, também, que essas coisas óbvias eu mesma já pensei. Sem ajuda, acredite. Se ainda não as realizei, num ato de fúria desesperada ou coragem suprema, é porque infelizmente não me falta racionalidade. Ou falta no lugar errado.

Largar o município significa largar um trabalho estável, imperdível (a não ser que se defenestre algum aluno, o que já não acho tão irreal), de "apenas" 16 horas semanais – fora de casa, é claro –, e que ainda por cima dá direito à meia-entrada em cinemas e afins, o que não é pouca vantagem para uma cinéfila. Fora o salariozinho que, sem ser especialmente bom, consegue mais-que-dobrar o pagamento do estado. Seria maravilhoso se não fosse uma &%$#*%&. Se não me subisse o sangue a cada vez que um aluno me xinga (mesmo que para não ser ouvido). Se não me incomodasse o fato de ir perdendo a voz dia após dia. Se não me amofinassem os deboches, as malcriações, as desobediências e todo o pacote que enfrentamos para, ao final, sermos recompensados com uma nova caçambada de notas vermelho-sangue. Notas de gente que, apesar de todos os nossos pesares, pode ter ouvido a aula mas sacudiu-a da cabeça na primeira esquina. Jogou-a na primeira lixeira laranja da rua. Se é que a jogou na lixeira em vez de acertar um transeunte pela janela do ônibus – que nem isso aprendem.

O que quero da vida? Ter a decência de, algum dia, atirar as malas para fora da gaiola de ouro e sair batendo a porta. Ser insanamente saudável no lugar de me manter, semana após semana, bimestre após bimestre, irrepreensível e responsavelmente infeliz.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Papelite aguda


Que semana. Sem um espacinho no meio para dar uma passada aqui no blog. Semana de últimas corrigices, fechamento de notas, conselho de classe no município, muitos, muitos, muitos, muitos (e outros muitos) papéis.

Obviamente precisamos registrar a papagaiada toda – notas, faltas e todos os etcéteras. Faz parte. Mas a coisa é não só excessiva como obsessiva. A cada mês, a cada ano nascem mais papéis, como gremlins molhados. No estado, algum'alma evoluída resolveu que, a partir de agora, lançaríamos os numerozinhos direto na internet, sem necessidade de celuloses que não sejam, claro, as nossas anotações pessoais. No município, o obscurantismo idade-médio prossegue sem data de validade. Tive de preencher as mesmas informações nas folhas individuais que os professores recebem, na folha geral que é usada para todos os professores e, dentro do $%&$#&% diário de classe, em duas páginas praticamente seguidas. Isso para cada turma, é óbvio. Todo ano o pessoal de cima se junta para debater como tornar o diário de classe o mais inconveniente e improdutivo possível. Tenho estudado convidar o MST para assentar nos meus diários. Latifúndios de informações vazias.

Por algum motivo que me foge à compreensão, a Secretaria insiste em não perceber que o tempo perdido em criar enredos fictícios para os 2.672.980.764 buraquinhos do diário – visando exclusivamente à inspeção, o nosso temido boi-boi-boi-da-cara-preta – seria adoravelmente fundamental para pensarmos em alguma coisa para a sala de aula de verdade, deste lado de cá do espelho. Tão forçados somos a anotar planejamentos que, definitivamente, não temos chance de planejar. Somos produtores de um carrossel oco e surdo de celulose, uma montanha de papel que relata contos de fadas produzidos para fiscal ver.

E o fiscal nem dorme ao som de nossas historinhas. Confere as letrinhas, satisfeito, como bruxa que se alegra com nossos dedos enfim gorditos. Daqui a algumas viradas de ampulheta, manda incinerar toda a nossa papelada trabalhosa, feliz com o dever cumprido.

No ano seguinte tem mais.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Holandizemo-nos


É, o canarinho pousou. Deu não. Fiquei chateada, é claro. Não tanto pelas folgas futuras (depois do jogo de sexta, a Copa não me renderia mais nenhuma anyway), mas pelo Brasil mesmo, que a gente não é de ferro. Fiquei chateada sim, mas não com a Holanda. Pelo contrário: agora estou torcendo por ela. Além do fato de a Laranja nunca ter levado nenhum caneco – o que soa absurdo diante de sua reputação mecânica –, admirei sinceramente aquela capacidade disciplinada, europeia, de tomar um gol e se reerguer. Acabar o primeiro tempo "levando" e se reinventar. Ter toda a torcida brasileira (estardalhaçante pela própria natureza) vuvuzelando nos ouvidos e fingir que nem aí. Não é pra todo mundo, sabemos por experiência própria: no primeiro golzinho – de empate! – que realmente ameaçou seu reinado na Copa, os meninos cá da terrinha cansaram de brincar e correram pra saia da mãe. Amarelaram – canarinhamente.

Não estou dizendo que era fácil a missão dos onze escolhidos de Dunga, ou que até minha avó faria mais um gol. Eu também tremeria nas bases. Também sentiria a pressão e, provavelmente, alguma tontura. Só que a Holanda sentiu igualmente, e infelizmente o mundo nos obriga a inevitáveis comparações – que servem, quanto mais não seja, de exemplos. Bons para autocrítica sem autoindulgência.

Vivos, levamos uma série ininterrupta de gols no primeiro tempo. Às vezes literalmente: chegamos à escola relaxados e, nos quinze minutos iniciais de aula, já fomos desrespeitados e estamos berrando. Descobrimos que um amigo (primo, colega, ex) anda espalhando fofocas não exatamente gentis. Somos recusados no emprego por não ter *** (complete: experiência, mestrado, domínio de Linux, mandarim fluente). Temos um livro recusado pela editora. Um projeto de pesquisa recusado pela banca. Um pedido de empréstimo recusado pelo banco. Falimos, demitimo-nos, adoecemos, perdemo-nos. Acontece. E a vontade é amarelar, correr às tontas, dar um pisão no primeiro adversário disponível. O pior: achar que qualquer outro gol nosso está fora de questão.

Duas consequências mais que certas. Em primeiro lugar, o jogo vai provar que estávamos corretos: não fazemos mais gol. O ato de fazer gol é impossível a quem não chuta e mete as caras, os corações, os pés. Em segundo lugar, achando-nos atarantados o bastante, o adversário faz mais um golzinho feliz – só pra garantir. E é justo, é muito justo, é justíssimo. Vitória se sela machucando rede, não coxa de holandês.

Quase sempre estou (canarinhamente) no time dos que se desesperam, começam a fragilizar defesas e correm contra o tempo sem grandes direções – não sabendo por onde começar a sair das abominações do município, por exemplo. Furada. Negócio mesmo é holandizar-se. Ter uma boa conversa consigo mesmo no vestiário, gritar que ainda rola muito jogo e, de preferência, botar em prática todos aqueles movimentos friamente calculados, ensaiados em momentos de relax. Fazer valer nossas duas metades da laranja, nossa docice e nossa frieza – o que temos de suculentamente emocionais e o que temos de técnicos, europeus, mecânicos.

Só falta me lembrar disso na próxima partida. E correr pro abraço.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Voa, canarinho, voa


Para minha total delícia, a próxima sexta-feira é mais um dos dias letivos engolidos pela Copa. A coisa fica mais orgástica pelo fato de a sexta ser o dia com mais tempos de aula. Engraçadamente, os alunos parecem "vingar-se" dos professores ao exclamar sua felicidade ante a proximidade do feriadão. Julgam que nosso maior objetivo na vida é estar diante do quadro, infernizando sua existência com gramáticas furiosas, exercícios estripadores e interpretações cruéis. Quão linda a inocência. Deixe-os pensar assim, ó mundo, que faz um bem danado aos meninos ser mocinhos de sua própria história e ter vilões que se dediquem apaixonada, exclusivamente à sua causa. Que decepção a dos alunos, se descobrem que o professor os trai com o cinema e a televisão! Quantos adultos lhes restarão para fazer oposição direita e honesta?

Sei que nunca torci com tanto calculismo pelo Brasil. Em 94, aluna de férias, acompanhei e sofri todos os jogos just because. Era brasileira, precisava mais? Em 98, mantive a lealdade, mas o sofrimento excessivo da final me impediu de ver qualquer jogo de 2002. Escaldei-me. Fiz beicinho (sem esperança de regresso). Em 2006, pensava só e tão-somente na viagem a Orlando – aliás, descobri há poucos dias que sequer me lembrava do país que sediou o campeonato. As únicas redondices que me interessavam, então, eram orelhinhas de Mickey; todo o resto do ano inexistiu. Agora, neste vuvuzelante 2010, sou professora do município e acompanho a tabela com a paixão da necessidade. Necessidade de folga. A paixão fria e estúpida de evitar um dia de correria, um dia de aborrecimento, um dia de gritaria e rouquidão. Quanto mais vuvuzela berrando brasileiramente, menos berro meu. Gritem, vuvuzelas, gritem. Pra frente, Brasil-sil-sil. Salve a seleção.

O dia (anotem:) o dia em que eu exclamar "Ah! que droga!" diante de um feriadão, minha alma profissional está salva. Seja onde for, estarei .

domingo, 27 de junho de 2010

Futuríssimo do presente


Hoje Guimarães Rosa, meu tão querido Joãozito, faria 102 anos. Não nasceu, aquele menino: aconteceu em Cordisburgo. E aconteceria em qualquer lugarzinho ou zão onde sua nave aterrisasse. Foi um fenômeno de gente apaixonada por saber coisas, por sabê-las em si mesmas, pelo saber em si mesmo. Era a definição do autodidata: o devorador de livros sim, mas de mundos também, todos os mundos que pudesse degustar. Amava descobrir. Fosse uma palavrita subitamente perfeita (ainda que inexistente), um causo regional, um nome sonoro de ave, um idioma inteiro. Joãozito era tanto ao mesmo tempo agora, era tantos presentes, que não poderia lhe caber um só futuro. O que você quer ser, Joãozito? Médico em um dos futuros, diplomata no outro, herói histórico no outro (muitos judeus lhe devem a vida), escritor (e que!) no outro. Além de profissões mais fofamente desassalariadas: Papai-Beleza, Vovô-Beleza.

Fico olhando meus alunos de município. Crianças, adolescentes. Se alguém lhes pergunta o que querem ser, dizem coisas glamurosas, não raro delirantes: atriz, cantor, jogador de futebol, modelo, esposa do Fiuk, namorado da Gisele. Por quê? Porque a (maior ou menor) impossibilidade de se chegar a uma dessas atividades os abona. Sonham, ou dizem sonhar, o impossível, porque isso lhes dá o "direito" de não lutar por ele. Sonham por hábito e comodismo, com o sonho de quem espera e não de quem busca.

Estudar para ser médico, advogado, engenheiro, professor, dentista? Tente usar esse argumento para convencê-los a fazer o exercício, a parar de dar bobeira, de tirar notas escarlatemente vergonhosas. Entre os alunos de hoje, se falta a famigerada "motivação" é porque também se perdeu, em algum momento, a única coisa que pode(ria) salvá-los: a paixão pelo futuro. O futuro dos alunos do presente é presentíssimo. Está no próximo fim de semana, no próximo jogo da Copa, na próxima calça da Gang, no capítulo da Malhação que começa daqui a pouquinho e essa aula está atrapalhando, humpf. Apaixonar-se pelo futuro de daqui a cinco, dez, quinze anos é coisa antiga. Pensar nos próximos dois bimestres? Coisa antiga. Bobagem. Carpe diem. O que, aliás (os coitadinhos não sabem), é realmente antiquíssimo.

Vamos ser otimistas para sobreviver: ainda não se fazem Joõezitos como futuramente.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Momento "quem me dera"


Ontem eu e Fábio fomos assistir a uma delícia politicamente incorretíssima, o colorido Kick-Ass – história de um sujeito que cisma de ser super-herói, apesar de ter tantos poderes quanto eu tenho conhecimento sobre as várias espécies de gimnospermas. Não, este post não é para dizer coisas inteligentes sobre o fato de nós (professores) também sermos heróis do cotidiano, etc. etc., e aquela adorável bobajada que só a Secretaria de Educação seria capaz de dizer. Longe disso. Saímos do filme ficcionalmente satisfeitos, mas por isso mesmo com a sensação de um buraquinho triste. Poderemos até escrever maravilhas sobre o longa em nosso blog conjunto, o Ultramuito (http://ultramuito.blogspot.com/), porém não teremos sido responsáveis pelo longa. Como o Fábio falou, às vezes cansa ficar sempre do lado de cá, na plateia, escrevendo sobre arte em vez de fazer arte. Recepcionando e digerindo o mundo em vez de acontecer nele. Tentando enfiar livros goela dos alunos abaixo, em vez de parir livros. Abocanhando histórias no lugar de fazê-las surgidas. Deixando-se ser, em vez de (definitivamente) o ser.

Kick-Ass vestiu um uniforme colorido, pegou a viola, botou na sacola e foi lutar. Simples assim. Por enquanto, nossos uniformes coloridos são o Ultramuito e o Quase Lugar. Mas tenho impressão de que ainda há muitas outras identidades secretas nossas andando por aí sem a gente.