segunda-feira, 31 de maio de 2010

Pondo compressa


Nunca tive problemas com aqueles filmes professormente edificantes, em que um mestre consegue transtornar (no bom sentido) as vidas de alunos duvidantes e duvidosos. Chorei horrores no fim de Mr. Holland, por exemplo, e adoro a pérola até hoje. Mas essa boa vontade ficcional só durou até minha entrada no município. Uma vez ferida pelas salas de aula em seu pior aspecto, tudo que quero é ficar longe delas nas páginas, na telinha, na telona. Já me custam demais os doze tempos da vida real. Catucar o machucado, mesmo em histórias docemente mentirosas (ou principalmente nelas), faz sair a casca que estanca o sangue entre um dia de aula e outro. Jogos mortais me abala menos, porque de serial killers costumo manter uma distância mais saudável. Pelo menos até onde eu sei.

Uma honrosa exceção tem sido o Diário de escola, livro de Daniel Pennac dado aos professores do município que o escolheram. A lógica não me mandava optar pela obra, mas é aquele quê que nos dá de repente: levei-o para casa. Estranhamente, comecei a lê-lo. Delícia. É verdade que me sinto três mil vezes mais ameba do que antes, aulamente falando. Pennac é o cara em termos de professorices. Ainda assim, gosto de o beber em goles no metrô, enquanto vou para a tortura. Daniel Pennac me acaricia com pílulas de compreensão aguda e parece que embriaga a gente. Não sublinho suas tantas inteligências para não sublinhar o livro inteiro. Mas já te quero em negrito, Pennac, italicamente: obrigada por me atormentar com muito mais precisão do que todas as ruminâncias educativas deste mundo. Tenho, agora, muito mais verdade para me sentir culpada. Antes assim: encontrar sempre uma Dona Benta literária e chorar no colo certo.

domingo, 30 de maio de 2010

sábado, 29 de maio de 2010

Despacientes

O colega que comentou amavelmente no primeiro post sublinhou que, para ser professor e médico, é preciso "gostar de gente". Concordo em gênero, número e... e as concordâncias só existem até aí. Mas vejamos o médico, por exemplo. Não é ele quem vai aos pacientes para implorar a chance de oferecer-lhes a cura. Não lhes enfia os remédios goela abaixo. Os doentes, muito ou pouco doentes, procuram-no e teoricamente se submetem a suas recomendações. Sim, há os rebeldes – mas não é o médico que fica com a fama de mau médico se o paciente rebelde se estrepa. O médico não precisa, em princípio, "motivar" o doente a se tratar. A doença o motiva. Ao médico basta o estar ali, o ser autoridade no assunto. Basta ser profissional, sério, competente, ter boa vontade, estar disponível. Adorável ou não, brincalhão ou não, simpático ou não, para ser bom médico basta ser bom médico. Que goste de gente sim, é claro, porém sem ter a obrigação de virar pai, mãe, babá e amigo de infância.

Nós, professores, trabalhamos com despacientes. Sim, a negativa está certa. Não são impacientes, são despacientes mesmo. Os doentes que se recusam a se aceitar como tais, atrás de quem somos profissionalmente obrigados a correr e oferecer, de bandeja, a cura. Não querem, não aceitam. Devemos "motivá-los" a desejar o que não desejam, suportá-los, amá-los, aceitar todas as ofensas, todos os desrespeitos – porque "são assim mesmo". O professor é o médico que apanha do mundo por não conseguir convencer os doentes a se tratarem. E apanha também se os doentes não o amam. Se não tomam o remédio. Apanha, principalmente, se morrem.

Não nos basta ser bons professores, sérios, competentes, cientes de nossa responsabilidade e matéria: temos de desempenhar o nosso papel e o dos "pacientes", encarnar em suas vontades e viver através deles. Os professores vivemos dentro de um monólogo; nós somos, por fado e fardo, todos os necessários personagens da história. E seu escritor também.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O ser (e por quê)

É aquilo: aparentemente, eu não deveria ser mesmo professora, como carinhosamente me disse o/a colega que comentou na postagem abaixo. Discordo, porque não odeio a profissão. Não trombei com ela: quis o magistério de propósito. E, com os alunos noturnos do estado, nunca tive sofrimentos. Mais do que isso: mantive e mantenho uma relação afetuosa. Trabalham sim, precisam faltar muito mais sim, normalmente têm mais dificuldades para (re)aprender matérias esquecidíssimas no tempo. Sim. Além disso, há o famigerado salário – tão indecente que, para dizê-lo, seria preciso colocar no blog o aviso de "conteúdo adulto". Não me importa. No magistério, o estado ainda vale a pena pela sensação de que estar ali não é ser, automaticamente, odiado pelos alunos. Nada como alunos que não são obrigados a ser alunos.

No município, os estudantes são compulsórios. Consequentemente, desejam salvar-se de sua situação da única maneira que conhecem: evitando a aula, mesmo que para isso precisem torcer que seus mestres caríssimos sejam atropelados na esquina ou atacados por uma nuvem de gafanhotos. Não conseguindo evitar a aula, boicotam-na. Independentemente de se trabalhar numa "boa escola" ou numa comunidade brabeira, a sala de aula é um lugar violento. Lugar de rouquidão permanente (pois, se você tem a desvantagem de ser mulher e baixinha, de não de impor pelo físico, já entra tendo de fazer 97% de esforço a mais). Lugar de ameaças frequentes – a gasolina que faz os alunos se mexerem. Não, não é por amor que se dispõem a "aprender". É pela nota. Pelo medo de o responsável ir à escola. Pelo receio do grito do professor. Pelo simples pânico da consequência (a curtíssimo prazo).

Por mais lotados que estejamos dos mais belos clichês educativos, das mais tocantes linhas da psicologia, dos mais exaustivos discursos de que a educação é a única saída para o país, tudo se esvai na primeira meia hora de desrespeito em sala, no primeiro momento em que um aluno o chama como a um cachorro ou o xinga como a um árbitro (e sua mãezinha). Fica a dica: os professores já sabem das vantagens da educação, já sabemos todos; falta, porém, quem se disponha a convencer os alunos disso.

Inaugurice


Prazer, gente – embora este blog seja uma tentativa um tanto quanto desesperada de lidar com o desprazer. Uma das formas máximas de desprazer: o pavor profissional. Pois é. Eu sou uma misplaced – e assumo. Uma daquelas criaturas que trabalham em alguma coisa e é como se desestivessem lá. Vão, mas é como se não fossem. Fazem o que têm de fazer, mas é como se não fizessem. Têm adoração pelos feriados e, apesar de odiarem futebol, suspiram pela Copa do Mundo. Todos sabem, afinal, que Copa do Mundo é um carnaval remix: uma segunda chance, durante o ano, para nada acontecer de verdade. Nada sério, é claro.

E onde é que eu desestou com tamanha intensidade? Nas salas de aula. Do município. Do Rio de Janeiro. Escola ruim? Nada: boa, até. Uma Sorbonne, perto do resto. Aí vem a pergunta do milhão: adianta? Ultimamente, tenho até considerado que isso prolonga o sofrimento. Se o lugar fosse um buraco imundo, depredado pelos alunos, com professores ameaçados na bazuca, tiroteios pontuais às 9h e às 13h, esfaqueamentos diários por causa de um pacote de figurinhas, eu simplesmente teria virado as costas no primeiro dia e ido embora. Sem sofrer, sem refletir, sem me martirizar. E o melhor: sem ser repreendida por "largar a estabilidade". Quem iria questionar minha fuga?

Mas não: o bicho é direitinho, dentro do que pode ser. E eu – prazer, gente – eu sou atualmente uma misplaced, refém de uma "boa" situação, que é, muitas vezes, cruel quase igualzinhamente às situações piores. A infelicidade que não é trágica não tem sequer o consolo do respeito alheio.