quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Back to war


A casa aqui do Quase anda vazia e triste, há muito sem espanar e varrer. É que tenho andado igualmente vazia. Não há melhor definição: vazia. Sabe os dias em que você amanhece com vontade de noite? Um sono que nunca é suficientemente dormido, mesmo que em 8, 10, 12 horas? Uma incapacidade momentânea de se dizer feliz com alguma coisa, mesmo que racionalmente se transborde de gratidão? Uma total desvontade de manifestar afeto aos próximos, mesmo que ele exista oceanicamente? Um desânimo absoluto de fazer inclusive as coisas queridas, como digitações criativas? Pois é: vazia.

Juro que não sei se é o município que destrói minha serotonina ou se meu corpo anda numa tal miséria de serotonina que fica quase insuportável arrastar o município (minha única cruz de madeira maciça). Vou empurrando o troço com humor bastante acinzentado, embora fino. Estou nublada há vários dias – sem, por enquanto, previsão de solzinho. Achei que não deveria vir ao blog criar assuntos tralalá e mentir generosamente. Não basta mentir generosamente no minuto a minuto do mundo táctil? Mais do que isso, entope as artérias.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

No subject


Não, a última semana não foi de tantas papelices como a anterior. Eu simplesmente estava vazia para escrever. O sentimento que devem ter os troncos ocos, um Kinder Ovo sem surpresa. Trabalhar no que trabalho me deixa tão triste, tão triste, tão irritada, tão desesperançada, tão desrespeitada, tão vilipendiada (olha o mofo!), que vez por outra chupa até minha grande alegria de digitar. Arrasto-me para cá de volta, obrigatoriamente, com o coração ainda de pijamas. Protesto, faço luto, mas volto.

É óbvio que o leitor pensou coisas óbvias. Que eu mude de emprego, que eu largue essa vida mal-amada de professora do município. É óbvio, também, que essas coisas óbvias eu mesma já pensei. Sem ajuda, acredite. Se ainda não as realizei, num ato de fúria desesperada ou coragem suprema, é porque infelizmente não me falta racionalidade. Ou falta no lugar errado.

Largar o município significa largar um trabalho estável, imperdível (a não ser que se defenestre algum aluno, o que já não acho tão irreal), de "apenas" 16 horas semanais – fora de casa, é claro –, e que ainda por cima dá direito à meia-entrada em cinemas e afins, o que não é pouca vantagem para uma cinéfila. Fora o salariozinho que, sem ser especialmente bom, consegue mais-que-dobrar o pagamento do estado. Seria maravilhoso se não fosse uma &%$#*%&. Se não me subisse o sangue a cada vez que um aluno me xinga (mesmo que para não ser ouvido). Se não me incomodasse o fato de ir perdendo a voz dia após dia. Se não me amofinassem os deboches, as malcriações, as desobediências e todo o pacote que enfrentamos para, ao final, sermos recompensados com uma nova caçambada de notas vermelho-sangue. Notas de gente que, apesar de todos os nossos pesares, pode ter ouvido a aula mas sacudiu-a da cabeça na primeira esquina. Jogou-a na primeira lixeira laranja da rua. Se é que a jogou na lixeira em vez de acertar um transeunte pela janela do ônibus – que nem isso aprendem.

O que quero da vida? Ter a decência de, algum dia, atirar as malas para fora da gaiola de ouro e sair batendo a porta. Ser insanamente saudável no lugar de me manter, semana após semana, bimestre após bimestre, irrepreensível e responsavelmente infeliz.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Papelite aguda


Que semana. Sem um espacinho no meio para dar uma passada aqui no blog. Semana de últimas corrigices, fechamento de notas, conselho de classe no município, muitos, muitos, muitos, muitos (e outros muitos) papéis.

Obviamente precisamos registrar a papagaiada toda – notas, faltas e todos os etcéteras. Faz parte. Mas a coisa é não só excessiva como obsessiva. A cada mês, a cada ano nascem mais papéis, como gremlins molhados. No estado, algum'alma evoluída resolveu que, a partir de agora, lançaríamos os numerozinhos direto na internet, sem necessidade de celuloses que não sejam, claro, as nossas anotações pessoais. No município, o obscurantismo idade-médio prossegue sem data de validade. Tive de preencher as mesmas informações nas folhas individuais que os professores recebem, na folha geral que é usada para todos os professores e, dentro do $%&$#&% diário de classe, em duas páginas praticamente seguidas. Isso para cada turma, é óbvio. Todo ano o pessoal de cima se junta para debater como tornar o diário de classe o mais inconveniente e improdutivo possível. Tenho estudado convidar o MST para assentar nos meus diários. Latifúndios de informações vazias.

Por algum motivo que me foge à compreensão, a Secretaria insiste em não perceber que o tempo perdido em criar enredos fictícios para os 2.672.980.764 buraquinhos do diário – visando exclusivamente à inspeção, o nosso temido boi-boi-boi-da-cara-preta – seria adoravelmente fundamental para pensarmos em alguma coisa para a sala de aula de verdade, deste lado de cá do espelho. Tão forçados somos a anotar planejamentos que, definitivamente, não temos chance de planejar. Somos produtores de um carrossel oco e surdo de celulose, uma montanha de papel que relata contos de fadas produzidos para fiscal ver.

E o fiscal nem dorme ao som de nossas historinhas. Confere as letrinhas, satisfeito, como bruxa que se alegra com nossos dedos enfim gorditos. Daqui a algumas viradas de ampulheta, manda incinerar toda a nossa papelada trabalhosa, feliz com o dever cumprido.

No ano seguinte tem mais.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Holandizemo-nos


É, o canarinho pousou. Deu não. Fiquei chateada, é claro. Não tanto pelas folgas futuras (depois do jogo de sexta, a Copa não me renderia mais nenhuma anyway), mas pelo Brasil mesmo, que a gente não é de ferro. Fiquei chateada sim, mas não com a Holanda. Pelo contrário: agora estou torcendo por ela. Além do fato de a Laranja nunca ter levado nenhum caneco – o que soa absurdo diante de sua reputação mecânica –, admirei sinceramente aquela capacidade disciplinada, europeia, de tomar um gol e se reerguer. Acabar o primeiro tempo "levando" e se reinventar. Ter toda a torcida brasileira (estardalhaçante pela própria natureza) vuvuzelando nos ouvidos e fingir que nem aí. Não é pra todo mundo, sabemos por experiência própria: no primeiro golzinho – de empate! – que realmente ameaçou seu reinado na Copa, os meninos cá da terrinha cansaram de brincar e correram pra saia da mãe. Amarelaram – canarinhamente.

Não estou dizendo que era fácil a missão dos onze escolhidos de Dunga, ou que até minha avó faria mais um gol. Eu também tremeria nas bases. Também sentiria a pressão e, provavelmente, alguma tontura. Só que a Holanda sentiu igualmente, e infelizmente o mundo nos obriga a inevitáveis comparações – que servem, quanto mais não seja, de exemplos. Bons para autocrítica sem autoindulgência.

Vivos, levamos uma série ininterrupta de gols no primeiro tempo. Às vezes literalmente: chegamos à escola relaxados e, nos quinze minutos iniciais de aula, já fomos desrespeitados e estamos berrando. Descobrimos que um amigo (primo, colega, ex) anda espalhando fofocas não exatamente gentis. Somos recusados no emprego por não ter *** (complete: experiência, mestrado, domínio de Linux, mandarim fluente). Temos um livro recusado pela editora. Um projeto de pesquisa recusado pela banca. Um pedido de empréstimo recusado pelo banco. Falimos, demitimo-nos, adoecemos, perdemo-nos. Acontece. E a vontade é amarelar, correr às tontas, dar um pisão no primeiro adversário disponível. O pior: achar que qualquer outro gol nosso está fora de questão.

Duas consequências mais que certas. Em primeiro lugar, o jogo vai provar que estávamos corretos: não fazemos mais gol. O ato de fazer gol é impossível a quem não chuta e mete as caras, os corações, os pés. Em segundo lugar, achando-nos atarantados o bastante, o adversário faz mais um golzinho feliz – só pra garantir. E é justo, é muito justo, é justíssimo. Vitória se sela machucando rede, não coxa de holandês.

Quase sempre estou (canarinhamente) no time dos que se desesperam, começam a fragilizar defesas e correm contra o tempo sem grandes direções – não sabendo por onde começar a sair das abominações do município, por exemplo. Furada. Negócio mesmo é holandizar-se. Ter uma boa conversa consigo mesmo no vestiário, gritar que ainda rola muito jogo e, de preferência, botar em prática todos aqueles movimentos friamente calculados, ensaiados em momentos de relax. Fazer valer nossas duas metades da laranja, nossa docice e nossa frieza – o que temos de suculentamente emocionais e o que temos de técnicos, europeus, mecânicos.

Só falta me lembrar disso na próxima partida. E correr pro abraço.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Voa, canarinho, voa


Para minha total delícia, a próxima sexta-feira é mais um dos dias letivos engolidos pela Copa. A coisa fica mais orgástica pelo fato de a sexta ser o dia com mais tempos de aula. Engraçadamente, os alunos parecem "vingar-se" dos professores ao exclamar sua felicidade ante a proximidade do feriadão. Julgam que nosso maior objetivo na vida é estar diante do quadro, infernizando sua existência com gramáticas furiosas, exercícios estripadores e interpretações cruéis. Quão linda a inocência. Deixe-os pensar assim, ó mundo, que faz um bem danado aos meninos ser mocinhos de sua própria história e ter vilões que se dediquem apaixonada, exclusivamente à sua causa. Que decepção a dos alunos, se descobrem que o professor os trai com o cinema e a televisão! Quantos adultos lhes restarão para fazer oposição direita e honesta?

Sei que nunca torci com tanto calculismo pelo Brasil. Em 94, aluna de férias, acompanhei e sofri todos os jogos just because. Era brasileira, precisava mais? Em 98, mantive a lealdade, mas o sofrimento excessivo da final me impediu de ver qualquer jogo de 2002. Escaldei-me. Fiz beicinho (sem esperança de regresso). Em 2006, pensava só e tão-somente na viagem a Orlando – aliás, descobri há poucos dias que sequer me lembrava do país que sediou o campeonato. As únicas redondices que me interessavam, então, eram orelhinhas de Mickey; todo o resto do ano inexistiu. Agora, neste vuvuzelante 2010, sou professora do município e acompanho a tabela com a paixão da necessidade. Necessidade de folga. A paixão fria e estúpida de evitar um dia de correria, um dia de aborrecimento, um dia de gritaria e rouquidão. Quanto mais vuvuzela berrando brasileiramente, menos berro meu. Gritem, vuvuzelas, gritem. Pra frente, Brasil-sil-sil. Salve a seleção.

O dia (anotem:) o dia em que eu exclamar "Ah! que droga!" diante de um feriadão, minha alma profissional está salva. Seja onde for, estarei .

domingo, 27 de junho de 2010

Futuríssimo do presente


Hoje Guimarães Rosa, meu tão querido Joãozito, faria 102 anos. Não nasceu, aquele menino: aconteceu em Cordisburgo. E aconteceria em qualquer lugarzinho ou zão onde sua nave aterrisasse. Foi um fenômeno de gente apaixonada por saber coisas, por sabê-las em si mesmas, pelo saber em si mesmo. Era a definição do autodidata: o devorador de livros sim, mas de mundos também, todos os mundos que pudesse degustar. Amava descobrir. Fosse uma palavrita subitamente perfeita (ainda que inexistente), um causo regional, um nome sonoro de ave, um idioma inteiro. Joãozito era tanto ao mesmo tempo agora, era tantos presentes, que não poderia lhe caber um só futuro. O que você quer ser, Joãozito? Médico em um dos futuros, diplomata no outro, herói histórico no outro (muitos judeus lhe devem a vida), escritor (e que!) no outro. Além de profissões mais fofamente desassalariadas: Papai-Beleza, Vovô-Beleza.

Fico olhando meus alunos de município. Crianças, adolescentes. Se alguém lhes pergunta o que querem ser, dizem coisas glamurosas, não raro delirantes: atriz, cantor, jogador de futebol, modelo, esposa do Fiuk, namorado da Gisele. Por quê? Porque a (maior ou menor) impossibilidade de se chegar a uma dessas atividades os abona. Sonham, ou dizem sonhar, o impossível, porque isso lhes dá o "direito" de não lutar por ele. Sonham por hábito e comodismo, com o sonho de quem espera e não de quem busca.

Estudar para ser médico, advogado, engenheiro, professor, dentista? Tente usar esse argumento para convencê-los a fazer o exercício, a parar de dar bobeira, de tirar notas escarlatemente vergonhosas. Entre os alunos de hoje, se falta a famigerada "motivação" é porque também se perdeu, em algum momento, a única coisa que pode(ria) salvá-los: a paixão pelo futuro. O futuro dos alunos do presente é presentíssimo. Está no próximo fim de semana, no próximo jogo da Copa, na próxima calça da Gang, no capítulo da Malhação que começa daqui a pouquinho e essa aula está atrapalhando, humpf. Apaixonar-se pelo futuro de daqui a cinco, dez, quinze anos é coisa antiga. Pensar nos próximos dois bimestres? Coisa antiga. Bobagem. Carpe diem. O que, aliás (os coitadinhos não sabem), é realmente antiquíssimo.

Vamos ser otimistas para sobreviver: ainda não se fazem Joõezitos como futuramente.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Momento "quem me dera"


Ontem eu e Fábio fomos assistir a uma delícia politicamente incorretíssima, o colorido Kick-Ass – história de um sujeito que cisma de ser super-herói, apesar de ter tantos poderes quanto eu tenho conhecimento sobre as várias espécies de gimnospermas. Não, este post não é para dizer coisas inteligentes sobre o fato de nós (professores) também sermos heróis do cotidiano, etc. etc., e aquela adorável bobajada que só a Secretaria de Educação seria capaz de dizer. Longe disso. Saímos do filme ficcionalmente satisfeitos, mas por isso mesmo com a sensação de um buraquinho triste. Poderemos até escrever maravilhas sobre o longa em nosso blog conjunto, o Ultramuito (http://ultramuito.blogspot.com/), porém não teremos sido responsáveis pelo longa. Como o Fábio falou, às vezes cansa ficar sempre do lado de cá, na plateia, escrevendo sobre arte em vez de fazer arte. Recepcionando e digerindo o mundo em vez de acontecer nele. Tentando enfiar livros goela dos alunos abaixo, em vez de parir livros. Abocanhando histórias no lugar de fazê-las surgidas. Deixando-se ser, em vez de (definitivamente) o ser.

Kick-Ass vestiu um uniforme colorido, pegou a viola, botou na sacola e foi lutar. Simples assim. Por enquanto, nossos uniformes coloridos são o Ultramuito e o Quase Lugar. Mas tenho impressão de que ainda há muitas outras identidades secretas nossas andando por aí sem a gente.

domingo, 20 de junho de 2010

Penúltima flor do Lácio


Não sei os outros professores, mas eu, que me considero razoavelmente proficiente na língua pátria, que me viro em inglês a ponto de não morrer de fome em outro país, que acho sonoramente colorido o sotaque espanhol e o francês, me torno uma xenófoba em potencial quando falam comigo em educacionês. Como odeio essa penúltima flor do Lácio, incultíssima e horrenda. O educacionês nada mais é do que pegar coisas que poderiam soar muito cruas (ou muito simples – pra que simplicidade?) no bom vernáculo e transformá-las em formas tão vazias quanto incompreensíveis, mas que dão uma ideia de falar bonito.

Por exemplo: se o aluno precisa aprender a identificar sujeito e predicado, dizem algo como "ser capaz de aferir os componentes que estruturam sintaticamente a oração", ou outra aberração do gênero. Se precisa parar de querer assassinar os coleguinhas, ele "necessita de maiores substratos para o pleno convívio social". Se é um capeta que o professor quer defenestrar ou estripar a cada aula, o que estiver mais à mão no momento, ele "é um aluno com déficit de atenção e aproveitamento". Não nos dizem sequer o que trabalhar em cada série; aqueles odiosos "descritores" do município dão a entender que tudo está valendo, desde que seja Português. Murmuram algo vagamente "contextual" e "morfossintático" para os professores, lançam a bomba e saem correndo.

Para quem conseguir fazer a gentileza de me traduzir esse periclitante idioma, prometo que caço, mato e trago a cabeça do primeiro Projeto Político-Pedagógico que eu vir dando sopa por aí. Porque o PPP, sabemos, é como as madeleines de Proust: todos dizem que existe, mas ninguém nunca viu. In Portuguese, at least. De resto, mim não entender.

sábado, 19 de junho de 2010

Dois é demais


Lembro-me das aulas de História na escola: eu ficava intrigadíssima com a famigerada frase de Rousseau, "A sociedade corrompe o homem". Ué, mas a sociedade não é composta justamente de homens?, matutava eu inocentemente. Hoje entendo, como entendo, a máxima de meu camarada. Quem vive em sala de aula sabe disso. Podem dizer o que disserem em favor das salas cheias de alunos: que eles precisam aprender a conviver, que a classe é um microcosmo da sociedade, que as referências de um enriquecem o outro etc. Bullshit. Uma montoeira de alunos no mesmo recinto serve apenas a um propósito: enlouquecer o professor e, consequentemente, atrapalhar a aula o máximo possível. Dizer o contrário é imaginar que as aulas realmente se passam como na Malhação ou nas reportagens compromissadíssimas do RJ-TV, aquelas com os alunos fingindo que a câmera não está nem ali.

Pois é o seguinte: no mundo real, aula é uma guerra. Alunos são criaturas que fingem que o professor não está nem ali. Enquanto se tenta explicar a matéria para os quatro que olham o quadro atentamente, deve-se mandar oito guardarem as figurinhas da Copa, três pararem de correr em sala, dezessete cessarem de gritar como vuvuzelas, dois desistirem de se matar, dois desistirem de se beijar, nove largarem o celular e/ou o mp3, um me devolver aqui essa porcaria de apagador e, finalmente, um sair de sala e só voltar com papai ou mamãe, ou ambos. Individualmente, são doces criaturas. Provavelmente aprenderiam cada palavra da matéria. Você é até capaz de sentir ternura por algum deles, num bom dia. Cumprimentam na rua, exclamam um "professora!" feliz e parecem gente. Em sociedade escolar, regridem ao tempo das cavernas e fazem o professor ter fantasias com tiranossauros famintos. Famintos de menininhos, é claro. Que falta faz um bom bicho-papão.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

I have a dream


Anteontem foi Dia dos Namorados – sempre bem-vindamente maravilhoso. Depois de todas as comemorices, fiquei pensando (com invejita ligeira) naqueles que têm a boa fortuna de não direcionar os coraçõezinhos vermelhos apenas a seu amado ou amada. Conseguem olhar a segunda-feira na folhinha como quem olha o retrato de seu caríssimo, e suspirar desejosamente. Conseguem voltar do fim de semana sorrindo tão sinceramente quanto foram. Namoram seus trabalhos, seus empregos, com a mais apaixonada sem-vergonhice deste mundo.

Eu também queria, ah! como! queria sentir júbilo e não horror quando ouvisse a musiquinha final do Fantástico. Queria me esbaldar em aula com o mesmo prazer colorido que tenho com o texto. Queria ver os alunos progredindo com a mesma gula que me provoca o parágrafo que cresce, a frase que se define, a palavra que flerta com a outra e outra até finalmente desposar-se (de preferência com um termo "J. Pinto Fernandes", que não tinha entrado na história). Queria que a sala de aula desse a palpitação da sala de cinema, que o quadro-negro (agora branco) copiasse a telona em termos de frenesi. Que o coração tivesse, na escola, o mesmo espanto feliz que lhe dá ao ver uma combinação bem-sucedida de cores, o mesmo tesão que tem na florada das cerejeiras, o mesmo amor vermelhinho que lhe causa um seriado de investigação.

Eu tenho o sonho de poder ser, de propósito, o que sou sem querer. E ganhar pra isso.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Dia útil


Ontem não dei aulas municipais: dia de entrega do boletim. Dia, consequentemente, de conversar com os responsáveis presentes. É o momento mais produtivo de todos. Estar em sala de aula, sendo você mesma mãe e pai de todas aquelas criaturinhas, é ter adotado filhos de mais para conseguir ensinar decentemente. Mas fazer o contrário – instruir os pais sobre técnicas de eles, sim, serem professores de seus filhos em casa, espichando o trabalho que sozinhos não temos tempo ou condições de realizar – é batata. Não tem como a escola funcionar com professores pais. O bicho só principia a se ajeitar com pais professores. Nós, pobres de nós, só temos cinquenta minutos para dividir por uma turma de 30, 40 pestes, o que dá menos de dois minutos por peste. Os pais, se não têm o dia inteiro, têm ao menos o suficiente, o que nos falta. Têm também a possibilidade de individualização. Para nós, cada aluno é uma fração; para seus pais, ele é o todo.

Os professores não podemos (convençam-se!) estar ali para ensinar, educar e amar profundamente ao mesmo tempo. Podemos equlibrar os pratos do jeito que é possível, nos virando nos trinta (nos cinquenta). É claro que o responsável não foi instruído para dar aula, mas pode perfeitamente supervisioná-la, ainda que seja analfabeto: checar o exercício feito, o estojo completo, o caderno disponível, o livro cuidado. Cada pedacinho feito pelo pai é uma pedra que se desamarra de nosso pescoço. Assim como nossos jogadores canarinhos, aluno bom é aquele que está sempre em clima de concentração. Coached. O tempo todo. Do vestiário até o gol.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Ser Moisés


Como disse dois posts atrás, hoje faço 30 anos. Também dois dias atrás, saí para minipré-comemorar (ou pré-minicomemorar) com os meus mais próximos – namorado e irmã. O garçom que nos atendeu no restaurante, Moisés, me surpreendeu por ser o garçom. Além de fofissimamente simpático, parecia adivinhar pensamentos e necessidades. Considerei imaginariamente que meu suco estava demorando um pouco – e ele se aproximou para avisar que o suco logo iria sair, houve um pequeno atraso na cozinha. Meu Fábio ergueu o dedo para chamá-lo e pedir talheres, mas Moisés, só de ver o gesto, murmurou de longe: "talheres?" – e veio trazê-los sem precisarmos verbalizar o pedido. Lá pelas tantas, visitou a mesa apenas para perguntar, risonho, se tudo estava bem, se faltava alguma coisa. Quando nos preparávamos para sair, usei o giz de cera que ficava sobre a mesa (um mimo para as crianças desenharem) no rabisco de um agradecimento na toalha branca de papel. "Valeu, Moisés!" Moisés merecia. Dez por cento pagos com muito gosto.

Lembram que comentei o quanto gostaria de ser boa, uma das melhores, fizesse o que fizesse? Pois é. Eu gostaria, em suma, de ser Moisés em minha profissão. Qualquer que ela continue sendo ou venha a ser. Uma profissional que – o significado do nome vem bem a calhar – se "salve das águas" complacentes e medíocres em que tendemos a navegar, por puro cansaço. Onde quer que eu esteja, quer continue nas salas de aula ou não, só o que desejo é me salvar das águas, da maré, da ressaca de desânimo que tanto nos arrasta. Pelos próximos trinta, sessenta, noventa anos, eu quero ser Moisés. Se ainda por cima conseguir libertar alguém de alguma escravidão, mostrar algum caminho, abrir passagem pra alguém por algum Mar Vermelho, já dou minha vida por muito bem paga. Basta um. Aquele um.

domingo, 6 de junho de 2010

Aquele um


Em nome de meus colegas que têm muitos anos, muitas turmas a mais nas costas, um pedido: se você é aquele um que aproveitou alguma coisa das aulas, volte. Mesmo que dez, quinze, vinte anos depois, volte e diga a seu professor. Diga que o jeito de ele explicar sujeito e predicado, em um determinado dia, foi fundamental para que você finalmente entendesse a coisa. Diga que foi com ele que aprendeu a usar a vírgula. A gostar de escrever bilhete, carta, blog. A perceber que Machado nunca foi um escritor difícil. A aceitar que poesia nunca foi coisa de frutinha. Diga qualquer verdade positiva (mas tem de ser verdade): que ele controlava bem a turma, que ele era o que tinha mais paciência para explicar de novo, que ele fazia as melhores piadas, que inspirava respeito mas não metia medo, que você na época desejava tê-lo como pai (ou mãe), que você foi secretamente apaixonado por ele (ou ela), que as aulas dele ajudaram um pouco no concurso da Petrobras, que aquela questão do Enem você só acertou por causa dele. Diga, diga.

Acho que essa – quem já jogou o trintão Pac-Man sabe – é a única vitamininha que permite a nós, professores, aguentar mais um dia na carreira devorando nossos fantasmas.

sábado, 5 de junho de 2010

Ô balancê, balancê

Na segunda-feira, faço trinta anos. Na prática, nenhuma grande mudança: continuo sendo tão jovem como aos 25, 28 ou 29, e fisicamente é quase a mesmíssima coisa. No símbolo, porém, é a hora inevitável de pensar se não estou decepcionando a garotinha de 6, a menina de 15, a universitária de 22, a mulher de 26 que eu era. E se não estou decepcionando todos os adultos que foram professores dessas criaturas que já fui. Sempre boa aluna, eu sabia que eles deveriam ter esperanças secretas (ou nem tanto) a meu respeito. Eu também. Não é que eu já tenha pretendido ser médica, juíza, física nuclear ou presidente; pretendia ser professora mesmo – e a função pouco importa. Que eu desejasse ser gari ou vendedora de empadinhas, ninguém teria nada com isso. Mas o que eu queria, mesmo, era ser boa. Boa no que fizesse. De preferência, uma das melhores.

Não me sinto assim. Longe disso. Sinto-me, tenho-me certeza como uma professora medíocre. Esquecível, que faz apenas o que deve fazer, e mal; que não ensina nada importante a ninguém e não marca a vida de nenhum aluno. Isso me frustra tanto, tanto. Mas o profundo desgaste gerado pela sala de aula do ensino fundamental, o profundo ressentimento que sobra, embalofa nossas artérias profissionais de colesterol ruim. Pouco fica de energia para criar. Para mim e meus colegas. Ficamos professores que dão a matéria, não faltam, não se atrasam, cumprem os deveres. É necessário, mas insuficiente. Se minha antiga menina de 15 anos encontrasse sua versão mais velha esmagada de desânimo, provavelmente nem a cumprimentaria na rua. Teria (e tem) vergonha de não se ser inteiramente. Demorará muito a idade em que a gente começa a ser?

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O quereres


Não é que eu não saiba o que fazer para controlar uma turma. Sempre se descobre, após uns dias de teste. Com a maior parte das turmas (isso confessado por eles mesmos), o lance é gritar. O máximo possível para a frequência humana. Claro que gostaríamos todos, com boa vontade pedagógica, de dar aulas harmônicas, ternas e felizes. Muito infelizmente, aluno é um bichinho com tendências sadomasoquistas. Simultâneas. Curte atormentar o professor "bonzinho" e parece gozar ao descobrir sua dominatrix. Sim, senhora professora. Grite, grite, mais, mais. Assim eu obedeço, assim eu respeito. E assim nos violentamos o ano inteiro – recíproca e individualmente: nossa garganta indo pro brejo em plena terça-feira, nosso amado aluno concordando em participar apenas em clima de quartel diário. Quanto mais pesado o coturno do mestre, mais silenciosa e produtiva a aula.

É esquizofrênico, doentio e real. Os professores sabemos que o afeto puro, indubitavelmente mais eficaz, é recusado dia após dia. Tem de vir misturado no leite, no grito, como o remedinho salvador que o doente insiste em cuspir. Cada aula, por conseguinte, é a guerra, com 30 ou 40 boquinhas que se recusam a tomar o remédio, 30 ou 40 adversários na intenção e no barulho. O problema é esse: quem se dispõe a ir 25 anos, cada aula, cada dia, com o mesmo querer dominador, a mesma vontade furiosa que te faz resolver cada birra, matar cada briga, bronquear cada caderno incompleto, cada material faltante, cada olhar voador? É um querer longo demais, necessariamente longo demais. Nossas aulas vivem em ritmo canino: 50 minutos equivalentes a 6 ou 7 horas. Gasto excessivo de calorias. Uma vida inteira de força contida em 50 minutos repletinhos de fraquezas transbordadas. Ser professor é muito, muito comprido.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Pondo compressa


Nunca tive problemas com aqueles filmes professormente edificantes, em que um mestre consegue transtornar (no bom sentido) as vidas de alunos duvidantes e duvidosos. Chorei horrores no fim de Mr. Holland, por exemplo, e adoro a pérola até hoje. Mas essa boa vontade ficcional só durou até minha entrada no município. Uma vez ferida pelas salas de aula em seu pior aspecto, tudo que quero é ficar longe delas nas páginas, na telinha, na telona. Já me custam demais os doze tempos da vida real. Catucar o machucado, mesmo em histórias docemente mentirosas (ou principalmente nelas), faz sair a casca que estanca o sangue entre um dia de aula e outro. Jogos mortais me abala menos, porque de serial killers costumo manter uma distância mais saudável. Pelo menos até onde eu sei.

Uma honrosa exceção tem sido o Diário de escola, livro de Daniel Pennac dado aos professores do município que o escolheram. A lógica não me mandava optar pela obra, mas é aquele quê que nos dá de repente: levei-o para casa. Estranhamente, comecei a lê-lo. Delícia. É verdade que me sinto três mil vezes mais ameba do que antes, aulamente falando. Pennac é o cara em termos de professorices. Ainda assim, gosto de o beber em goles no metrô, enquanto vou para a tortura. Daniel Pennac me acaricia com pílulas de compreensão aguda e parece que embriaga a gente. Não sublinho suas tantas inteligências para não sublinhar o livro inteiro. Mas já te quero em negrito, Pennac, italicamente: obrigada por me atormentar com muito mais precisão do que todas as ruminâncias educativas deste mundo. Tenho, agora, muito mais verdade para me sentir culpada. Antes assim: encontrar sempre uma Dona Benta literária e chorar no colo certo.

domingo, 30 de maio de 2010

sábado, 29 de maio de 2010

Despacientes

O colega que comentou amavelmente no primeiro post sublinhou que, para ser professor e médico, é preciso "gostar de gente". Concordo em gênero, número e... e as concordâncias só existem até aí. Mas vejamos o médico, por exemplo. Não é ele quem vai aos pacientes para implorar a chance de oferecer-lhes a cura. Não lhes enfia os remédios goela abaixo. Os doentes, muito ou pouco doentes, procuram-no e teoricamente se submetem a suas recomendações. Sim, há os rebeldes – mas não é o médico que fica com a fama de mau médico se o paciente rebelde se estrepa. O médico não precisa, em princípio, "motivar" o doente a se tratar. A doença o motiva. Ao médico basta o estar ali, o ser autoridade no assunto. Basta ser profissional, sério, competente, ter boa vontade, estar disponível. Adorável ou não, brincalhão ou não, simpático ou não, para ser bom médico basta ser bom médico. Que goste de gente sim, é claro, porém sem ter a obrigação de virar pai, mãe, babá e amigo de infância.

Nós, professores, trabalhamos com despacientes. Sim, a negativa está certa. Não são impacientes, são despacientes mesmo. Os doentes que se recusam a se aceitar como tais, atrás de quem somos profissionalmente obrigados a correr e oferecer, de bandeja, a cura. Não querem, não aceitam. Devemos "motivá-los" a desejar o que não desejam, suportá-los, amá-los, aceitar todas as ofensas, todos os desrespeitos – porque "são assim mesmo". O professor é o médico que apanha do mundo por não conseguir convencer os doentes a se tratarem. E apanha também se os doentes não o amam. Se não tomam o remédio. Apanha, principalmente, se morrem.

Não nos basta ser bons professores, sérios, competentes, cientes de nossa responsabilidade e matéria: temos de desempenhar o nosso papel e o dos "pacientes", encarnar em suas vontades e viver através deles. Os professores vivemos dentro de um monólogo; nós somos, por fado e fardo, todos os necessários personagens da história. E seu escritor também.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O ser (e por quê)

É aquilo: aparentemente, eu não deveria ser mesmo professora, como carinhosamente me disse o/a colega que comentou na postagem abaixo. Discordo, porque não odeio a profissão. Não trombei com ela: quis o magistério de propósito. E, com os alunos noturnos do estado, nunca tive sofrimentos. Mais do que isso: mantive e mantenho uma relação afetuosa. Trabalham sim, precisam faltar muito mais sim, normalmente têm mais dificuldades para (re)aprender matérias esquecidíssimas no tempo. Sim. Além disso, há o famigerado salário – tão indecente que, para dizê-lo, seria preciso colocar no blog o aviso de "conteúdo adulto". Não me importa. No magistério, o estado ainda vale a pena pela sensação de que estar ali não é ser, automaticamente, odiado pelos alunos. Nada como alunos que não são obrigados a ser alunos.

No município, os estudantes são compulsórios. Consequentemente, desejam salvar-se de sua situação da única maneira que conhecem: evitando a aula, mesmo que para isso precisem torcer que seus mestres caríssimos sejam atropelados na esquina ou atacados por uma nuvem de gafanhotos. Não conseguindo evitar a aula, boicotam-na. Independentemente de se trabalhar numa "boa escola" ou numa comunidade brabeira, a sala de aula é um lugar violento. Lugar de rouquidão permanente (pois, se você tem a desvantagem de ser mulher e baixinha, de não de impor pelo físico, já entra tendo de fazer 97% de esforço a mais). Lugar de ameaças frequentes – a gasolina que faz os alunos se mexerem. Não, não é por amor que se dispõem a "aprender". É pela nota. Pelo medo de o responsável ir à escola. Pelo receio do grito do professor. Pelo simples pânico da consequência (a curtíssimo prazo).

Por mais lotados que estejamos dos mais belos clichês educativos, das mais tocantes linhas da psicologia, dos mais exaustivos discursos de que a educação é a única saída para o país, tudo se esvai na primeira meia hora de desrespeito em sala, no primeiro momento em que um aluno o chama como a um cachorro ou o xinga como a um árbitro (e sua mãezinha). Fica a dica: os professores já sabem das vantagens da educação, já sabemos todos; falta, porém, quem se disponha a convencer os alunos disso.

Inaugurice


Prazer, gente – embora este blog seja uma tentativa um tanto quanto desesperada de lidar com o desprazer. Uma das formas máximas de desprazer: o pavor profissional. Pois é. Eu sou uma misplaced – e assumo. Uma daquelas criaturas que trabalham em alguma coisa e é como se desestivessem lá. Vão, mas é como se não fossem. Fazem o que têm de fazer, mas é como se não fizessem. Têm adoração pelos feriados e, apesar de odiarem futebol, suspiram pela Copa do Mundo. Todos sabem, afinal, que Copa do Mundo é um carnaval remix: uma segunda chance, durante o ano, para nada acontecer de verdade. Nada sério, é claro.

E onde é que eu desestou com tamanha intensidade? Nas salas de aula. Do município. Do Rio de Janeiro. Escola ruim? Nada: boa, até. Uma Sorbonne, perto do resto. Aí vem a pergunta do milhão: adianta? Ultimamente, tenho até considerado que isso prolonga o sofrimento. Se o lugar fosse um buraco imundo, depredado pelos alunos, com professores ameaçados na bazuca, tiroteios pontuais às 9h e às 13h, esfaqueamentos diários por causa de um pacote de figurinhas, eu simplesmente teria virado as costas no primeiro dia e ido embora. Sem sofrer, sem refletir, sem me martirizar. E o melhor: sem ser repreendida por "largar a estabilidade". Quem iria questionar minha fuga?

Mas não: o bicho é direitinho, dentro do que pode ser. E eu – prazer, gente – eu sou atualmente uma misplaced, refém de uma "boa" situação, que é, muitas vezes, cruel quase igualzinhamente às situações piores. A infelicidade que não é trágica não tem sequer o consolo do respeito alheio.